domingo, 2 de dezembro de 2012

A Vocação Cristã - Por São Josemaría Escrivá


Inicia-se o ano litúrgico, e o Intróito da Missa propõe-nos uma consideração intimamente relacionada com o princípio da nossa vida cristã: a vocação que recebemos. Vias tuas, Domine, demonstra mihi, et semitas tuas edoce me : mostra-me, Senhor, os teus caminhos e indica-me as tuas veredas. Pedimos ao Senhor que nos guie, que nos deixe ver seus passos, para que possamos caminhar para a plenitude dos seus mandamentos, que é a caridade.



Acredito que vós e eu, ao pensarmos nas circunstâncias que acompanharam a nossa decisão de nos esforçarmos por viver integramente a fé, daremos muitas graças ao Senhor e teremos a convicção sincera - sem falsas humildades - de que não houve nisso mérito algum da nossa parte. Em geral, aprendemos a invocar Deus desde a infância, dos lábios de pais cristãos; mais adiante, professores, companheiros e conhecidos nos ajudaram de mil maneiras a não perder Jesus Cristo de vista. 

Um dia - não quero generalizar; abre teu coração ao Senhor e conta-lhe a tua história - talvez um amigo, um simples cristão igual a ti, te fez descobrir um panorama profundo e novo, e, ao mesmo tempo, antigo como o Evangelho. 

Sugeriu-te a possibilidade de te empenhares seriamente em seguir Cristo, em ser apóstolo de apóstolos. Talvez tenhas perdido então a tranqüilidade e não a tenhas recuperado, convertida em paz, enquanto livremente, porque te apeteceu - que é a razão mais sobrenatural - não respondeste sim a Deus. E veio a alegria, forte, constante, que só desaparece quando te afastas dEle.

Não me agrada falar de escolhidos nem de privilegiados. Mas é Cristo quem fala, quem escolhe. É a linguagem da Escritura: Elegit nos in ipso ante mundi constitutionem - diz São Paulo - ut essemus sancti. Escolheu-nos antes da criação do mundo, para que sejamos santos. 

Eu sei que isto não te enche de orgulho, nem te faz sentir-te superior aos outros homens. Essa escolha, raiz da chamada, deve ser a base da tua humildade. Levanta-se por acaso um monumento aos pincéis do grande pintor? Serviram para plasmar obras primas, mas o mérito é do artista. Nós, cristãos, somos apenas instrumentos do Criador do mundo, do Redentor de todos os homens.


Anima-me considerar um precedente narrado passo a passo nas páginas do Evangelho: a vocação dos primeiros Doze. Vamos meditá-la devagar, pedindo a essas santas testemunhas do Senhor que nos ensinem a seguir Cristo como elas o fizeram.

Aqueles primeiros apóstolos - que me inspiram grande devoção e carinho - eram bem pouca coisa, segundo os critérios humanos. Quanto à posição social, com exceção de Mateus - que certamente ganhava bem a vida e que deixou tudo quando Jesus lho pediu - eram pescadores: viviam do dia a dia, labutando até de noite para poderem conseguir o seu sustento.

Mas a posição social é o que menos importa. Não eram cultos, nem sequer muito inteligentes, pelo menos no que se refere às realidades sobrenaturais. 

Até os exemplos e as comparações mais simples eram para eles incompreensíveis, e recorriam ao Mestre:Domine, edissere nobis parabolam, Senhor, explica-nos a parábola. Quando Jesus, servindo-se de uma imagem, alude ao fermento dos fariseus, imaginam que os está recriminando por não terem comprado pão.

Pobres, ignorantes. E nem sequer simples, abertos. Dentro das suas limitações, eram ambiciosos. Discutem muitas vezes sobre qual deles será o maior quando, segundo a sua mentalidade, Cristo instaurar na terra o reino definitivo de Israel. Discutem e exaltam-se durante esse momento sublime em que Jesus está prestes a imolar-se pela humanidade: na intimidade do Cenáculo.

Fé, pouca. O próprio Jesus Cristo o diz. Viram-no ressuscitar mortos, curar toda a espécie de doenças, multiplicar o pão e os peixes, acalmar tempestades, expulsar demônios. E é São Pedro, escolhido como cabeça, o único que sabe responder prontamente: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo. Mas é uma fé que ele interpreta à sua maneira, porque se atreve a enfrentar Cristo Jesus, para que não se entregue em redenção pelos homens. E Jesus tem que lhe responder: Retira-te de mim, Satanás, que me serves de escândalo, porque não tens a sabedoria das coisas de Deus, mas das coisas dos homens. Pedro raciocinava humanamente, comenta São João Crisóstomo, e concluía que tudo aquilo - a Paixão e a Morte - era indigno de Cristo, reprovável. Por isso Jesus repreende-o e diz-lhe: não, sofrer não é coisa indigna de mim; tu pensas assim porque raciocinas com idéias carnais, humanas.

Mas será que aqueles homens de pouca fé sobressaíam talvez pelo seu amor a Cristo? Não há dúvida de que o amavam, pelo menos de palavra. Em certas ocasiões, deixam-se arrebatar pelo entusiasmo: Vamos nós também e morramos com Ele. Mas, na hora da verdade, todos fogem, exceto João, que verdadeiramente amava com obras. Só este adolescente, o mais jovem dos Apóstolos, permanece junto da Cruz. Os outros não sentiam esse amor tão forte quanto a morte.

Estes eram os Discípulos escolhidos pelo Senhor; assim os escolhe Cristo; assim se comportam antes de que, cheios do Espírito Santo, se convertam em colunas da Igreja. São homens comuns, com defeitos, com fraquezas, com a palavra mais fácil que as obras. 

E, entretanto, Jesus chama-os para fazer deles pescadores de homens, co-redentores, administradores da graça de Deus.

Conosco aconteceu algo de semelhante. Sem grande dificuldade, poderíamos encontrar na nossa família, entre os nossos amigos e companheiros - para não me referir ao imenso panorama do mundo -, tantas outras pessoas mais dignas que nós de receberem a chamada de Cristo. Mais simples, mais sábias, mais influentes, mais importantes, mais agradecidas, mais generosas. 

Eu, ao pensar nestes pontos, sinto-me envergonhado. Mas percebo também que a nossa lógica humana não serve para explicar as realidades da graça. Deus costuma procurar instrumentos fracos, para que se perceba claramente que a obra é dEle. São Paulo evoca com estremecimento a sua vocação: E por último, depois de todos, foi também visto por mim, como por um aborto. Porque eu sou o mínimo dos Apóstolos, indigno de ser chamado Apóstolo porque persegui a Igreja de Deus. Assim escreve Saulo de Tarso, homem de uma personalidade e um vigor que a história nada mais fez do que agigantar.

Fomos chamados sem mérito algum da nossa parte, dizia: porque na base da vocação encontra-se o conhecimento da nossa miséria, a consciência de que as luzes que iluminam a alma - a fé -, o amor com que amamos - a caridade - e o desejo que nos sustém - a esperança -, são dons gratuitos de Deus. Por isso, não crescer em humildade significa perder de vista o propósito da eleição divina: ut essemus sancti, a santidade pessoal.

E agora, partindo dessa humildade, podemos compreender toda a maravilha da chamada divina. A mão de Cristo colheu-nos de um trigal: o semeador aperta em sua mão chagada o punhado de trigo. O sangue de Cristo banha a semente, empapa-a. Depois, o Senhor lança ao ar esse trigo, para que, morrendo, seja vida e, afundando-se na terra, seja capaz de multiplicar-se em espigas de ouro.

A Epístola da Missa lembra-nos que temos que assumir esta responsabilidade de apóstolos com um espírito novo, cheios de animo, despertos. Já é hora de despertarmos do sono, pois estamos mais perto da nossa salvação do que quando recebemos a fé. A noite avança e o dia aproxima-se. Deixemos, pois, as obras das trevas, e revistamo-nos das armas da luz.

Dir-me-eis que não é fácil, e não vos faltará razão. Os inimigos do homem, que são os inimigos da sua santidade, tentam impedir essa vida nova, esse revestir-nos do espírito de Cristo. Não encontro melhor enumeração dos obstáculos à fidelidade cristã do que a que estabelece São João: concupiscentia carnis, concupiscentia oculorum et superbia vitae; tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida.

A concupiscência da carne não é apenas o impulso desordenado dos sentidos em geral, nem o apetite sexual, que deve ser ordenado e em si não é mau, porque é uma nobre realidade humana santificável. Por isso, nunca falo de impureza, mas de pureza, já que a todos se dirigem as palavras de Cristo: Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus. Por vocação divina, uns terão que viver essa pureza no matrimônio; outros, renunciando aos amores humanos, para corresponderem única e apaixonadamente ao amor de Deus. Mas nem uns nem outros escravos da sensualidade, porém senhores do seu corpo e do seu coração, para poderem dá-los sacrificadamente aos outros.

Ao tratar da virtude da pureza, costumo acrescentar o qualificativo de santa. A pureza cristã, a santa pureza, não é o orgulho de nos sentirmos puros, não contaminados. É saber que temos os pés de barro, ainda que a graça de Deus nos livre dia a dia das ciladas do inimigo. Considero uma deformação do cristianismo a insistência com que certas pessoas escrevem ou pregam quase exclusivamente sobre esta matéria, esquecendo outras virtudes que são capitais para o cristão e, em geral, para a convivência entre os homens.

A santa pureza não é a única nem a principal virtude cristã: é, entretanto, indispensável para perseverarmos no esforço diário da nossa santificação; e sem ela não é possível qualquer dedicação ao apostolado. A pureza é conseqüência do amor com que entregamos ao Senhor a alma e o corpo, as potências e os sentidos. Não é negação, é afirmação jubilosa.

Dizia que a concupiscência da carne não se reduz exclusivamente à desordem da sensualidade: estende-se ao comodismo e à falta de vibração, que impelem a procurar o mais fácil, o mais agradável, o caminho aparentemente mais curto, mesmo à custa de concessões no caminho da fidelidade a Deus.

Comportar-se assim equivaleria a abandonar-se incondicionalmente ao império de uma dessas leis, a do pecado, contra a qual nos previne São Paulo: Encontro, pois, esta lei em mim: quando quero fazer o bem, o mal está junto de mim. Porque me deleito na lei de Deus segundo o homem interior, mas vejo nos meus membros outra lei que se opõe à lei do meu espírito e me subjuga à lei do pecado... Infelix ego homo!, infeliz de mim! Quem me livrará deste corpo de morte? Ouçamos o que responde o próprio Apóstolo: a graça de Deus, por Jesus Cristo Nosso Senhor. Podemos e devemos lutar contra a concupiscência da carne, porque, se formos humildes, ser-nos-á concedida sempre a graça do Senhor.

O outro inimigo, escreve São João, é a concupiscência dos olhos, uma avareza de fundo que leva a apreciar apenas o que se pode tocar: os olhos que ficam como que colados às coisas terrenas, mas também os olhos que, por isso mesmo, não sabem descobrir as realidades sobrenaturais. Portanto, podemos entender a expressão da Sagrada Escritura como uma referência à avareza dos bens materiais e, além disso, a essa deformação que nos leva a observar o que nos rodeia - os outros, as circunstâncias da nossa vida e do nosso tempo - com visão exclusivamente humana.

Os olhos da alma embotam-se; a razão julga-se auto-suficiente e capaz de entender todas as coisas prescindindo de Deus. É uma tentação sutil, que se escuda na dignidade da inteligência; da inteligência que nosso Pai-Deus outorgou ao homem para que o conheça e o ame livremente. Arrastada por essa tentação, a inteligência humana considera-se o centro do universo, entusiasma-se novamente com o sereis como deuses e, enchendo-se de amor por si mesma, vira as costas ao amor de Deus.

Deste modo, a nossa existência pode entregar-se sem condições às mãos do terceiro inimigo,asuperbia vitae. Não se trata simplesmente de pensamentos efêmeros de vaidade ou de amor próprio: é um endurecimento generalizado. 

Não nos enganemos, porque tocamos o pior dos males, a raiz de todos os extravios. A luta contra a soberba deve ser constante, porque, como já se disse graficamente, essa paixão morre um dia depois de a pessoa morrer. É a altivez do fariseu, a quem Deus reluta em justificar por encontrar nele uma barreira de auto-suficiência. É a arrogância que leva a desprezar os demais homens, a dominá-los, a maltratá-los: porque onde houver soberba, aí haverá também ofensa e desonra.

Começa hoje o tempo do Advento e é bom que tenhamos considerado as insídias destes inimigos da alma: a desordem da sensualidade e da fácil leviandade; o desatino da razão que se opõe ao Senhor; a presunção altaneira, que esteriliza o amor a Deus e às criaturas. Todos estes estados de ânimo são obstáculos certos, e seu poder perturbador é grande. Por isso a liturgia nos faz implorar a misericórdia divina: A Ti, Senhor, elevo minha alma; em Ti espero; não seja eu confundido,nem se riam de mim os meus adversários, rezamos no Intróito. E na antífona do Ofertório repetiremos: Espero em Ti, não seja eu confundido!

Agora que se aproxima o tempo da salvação, é consolador ouvir dos lábios de São Paulo: Depois que Deus Nosso Salvador manifestou sua benignidade e amor aos homens, livrou-nos não pelas obras de justiça que tivéssemos feito, mas por sua misericórdia.

Se percorrermos as Santas Escrituras, descobriremos constantemente a presença da misericórdia de Deus: enche a terra, estende-se a todos os seus filhos, super omnem carnem; rodeia-nos, antecede-nos, multiplica-se para nos ajudar, e foi continuamente confirmada. Ao ocupar-se de nós como Pai amoroso, Deus nos tem presentes em sua misericórdia: uma misericórdia suave, agradável como a nuvem que se desfaz em tempo de seca.

Jesus Cristo resume e compendia toda a história da misericórdia divina: Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. E em outra ocasião: Sede misericordiosos, como vosso Pai celestial é misericordioso. 

Ficaram também muito gravadas em nós, entre tantas outras cenas do Evangelho, a clemência com a mulher adúltera, as parábolas do filho pródigo, da ovelha perdida e do devedor perdoado, a ressurreição do filho da viúva de Naim. Quantas razões de justiça para explicar este grande prodígio! Morreu o filho único daquela pobre viúva, aquele que dava sentido à sua vida e podia ajudá-la na sua velhice. Mas Cristo não faz o milagre por justiça; Ele o faz por compaixão, porque se comove interiormente perante a dor humana.

Que segurança nos deve produzir a comiseração do Senhor! Clamará por mim e eu o ouvirei, porque sou misericordioso. É um convite, uma promessa que não deixará de cumprir. Aproximemo-nos, pois, confiadamente do trono da graça, a fim de alcançarmos misericórdia e auxílio da graça no tempo oportuno. Os inimigos da nossa santificação nada conseguirão, porque essa misericórdia de Deus nos protege por antecipado; e se por nossa culpa e fraqueza caímos, o Senhor nos socorre e nos levanta. 

Tinhas aprendido a evitar a negligência, a afastar de ti a arrogância, a adquirir piedade, a não ser prisioneiro das questões mundanas, a não preferir o caduco ao eterno. Mas, como a debilidade humana não pode manter um passo decidido num mundo resvaladiço, o bom Médico te indicou também remédios contra a desorientação, e o Juiz misericordioso não te negou a esperança do perdão.

A existência do cristão desenvolve-se neste clima da misericórdia divina. Esse é o âmbito do esforço com que procura comportar-se como filho do Pai. E quais os principais meios para conseguirmos que a vocação se fortaleça? Hoje te indicarei dois, que são quais eixos vivos da conduta cristã: a vida interior e a formação doutrinal, o conhecimento profundo da nossa fé.

Vida interior, em primeiro lugar. Como são poucos ainda os que a entendem! Ao ouvirem,falar de vida interior, pensam na escuridão do templo, quando não no ambiente rarefeito de certas sacristias. Há mais de um quarto de século venho dizendo que não é isso. O que descrevo é a vida interior de um simples cristão, que habitualmente se encontra em plena rua, ao ar livre; e que na rua, no trabalho, na família e nos momentos de lazer permanece atento a Jesus o dia todo. 

E o que é isso senão vida de oração contínua? Não é verdade que compreendeste a necessidade de ser alma de oração, com uma relação de amizade com Deus que te leve a endeusar-te? 

Essa é a fé cristã e assim o compreenderam sempre as almas de oração. Escreve Clemente de Alexandria: Torna-se Deus o homem que quer o mesmo que Deus quer.

A princípio custa; é preciso esforçar-se por dirigir o olhar para o Senhor, por agradecer a sua piedade paternal e concreta para conosco. Pouco a pouco, o amor de Deus - embora não seja coisa de sentimentos - torna-se tão palpável como uma flechada na alma. É Cristo que nos persegue amorosamente: Eis que estou à tua porta e bato. Como vai a tua vida de oração? Não sentes às vezes, durante o dia, desejos de conversar mais com Ele? Não lhe dizes: mais tarde te contarei isto, mais tarde conversarei sobre isto contigo?

Nos momentos expressamente dedicados a esse colóquio com o Senhor, o coração se expande, a vontade se fortalece, a inteligência - ajudada pela graça - embebe em realidades sobrenaturais as realidades humanas. E, como fruto, surgem sempre propósitos claros, práticos, de melhorar a conduta, de tratar delicadamente, com caridade, todos os homens, de nos empenharmos a fundo - com o empenho dos bons esportistas - nesta luta cristã de amor e de paz.

A oração se torna contínua, como o palpitar do coração, como o pulso. Sem essa presença de Deus, não há vida contemplativa; e, sem vida contemplativa, de pouco vale trabalhar por Cristo, porque, se Deus não edifica a casa, em vão trabalham os que a constroem.

Para se santificar, o simples cristão - que não é um religioso, que não se separa do mundo, porque o mundo é o lugar do seu encontro com Cristo - não precisa de hábito externo nem de sinais distintivos. Seus sinais são internos: a presença de Deus constante e o espírito de mortificação. Na realidade, uma coisa só, porque a mortificação nada mais é que a oração dos sentidos.

A vocação cristã é vocação de sacrifício, de penitência, de expiação. Temos que reparar por nossos pecados - quantas vezes não teremos virado a cara para não vermos Deus! - e por todos os pecados dos homens. 

Temos que seguir de perto os passos de Cristo: trazendo sempre em nosso corpo a mortificação, a abnegação de Cristo, seu abatimento na Cruz, para que também em nossos corpos se manifeste a vida de Jesus. O nosso caminho é de imolação, e essa renúncia nos trará ogaudium cum pace, a alegria e a paz.

Não contemplamos o mundo com gesto triste. Têm prestado um fraco serviço à catequese, talvez involuntariamente, esses biógrafos de santos que queriam descobrir a todo o custo coisas extraordinárias nos servos de Deus, já desde os primeiros vagidos. E contam de alguns deles que em sua infância não choravam, e às sextas-feiras não mamavam, por mortificação... Vós e eu nascemos chorando, como Deus manda; e nos prendíamos ao peito de nossa mãe sem nos preocuparmos com Quaresmas nem com Têmporas.

Agora, com o auxílio de Deus, aprendemos a descobrir ao longo dos dias - aparentemente sempre iguais - spatium verae poenitentiae, um tempo de verdadeira penitência; e nesses instantes fazemos propósitos de emendatio vitae, de melhorar a nossa vida. Este é o caminho para sabermos acolher a graça e as inspirações do Espírito Santo na alma. E com essa graça - repito - vem o gaudium cum pace, a alegria, a paz e a perseverança no caminho.

A mortificação é o sal da nossa vida. E a melhor mortificação é a que combate - em pequenos detalhes, durante o dia todo - a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida. Mortificações que não mortifiquem os outros, que nos tornem mais delicados, mais compreensivos, mais abertos a todos. Não seremos mortificados se formos suscetíveis, se estivermos preocupados apenas com os nossos egoísmos, se esmagarmos os outros, se não nos soubermos privar do supérfluo e, às vezes, do necessário; se nos entristecermos quando as coisas não correm como tínhamos previsto. Pelo contrário, seremos mortificados se nos soubermos fazer tudo para todos, para salvar a todos.

A vida de oração e de penitência, e a consideração da nossa filiação divina, nos transformam em cristãos profundamente piedosos, como crianças diante de Deus. 

A piedade é a virtude dos filhos, e, para que o filho possa confiar-se aos braços de seu pai, deve ser e sentir-se pequeno, necessitado. Tenho meditado com freqüência nessa vida de infância espiritual, que não se opõe à fortaleza porque exige uma vontade enérgica, uma maturidade temperada, um caráter firme e aberto.

Piedosos, pois, como meninos; mas não ignorantes, por que cada um deve esforçar-se, na medida de suas possibilidades, por estudar a fé com seriedade e espírito científico; e tudo isso é teologia. Piedade de meninos, portanto, mas doutrina segura de teólogos.

O empenho em adquirir esta ciência teológica - a boa e firme doutrina crista - deve-se em primeiro lugar ao desejo de conhecer e amar a Deus. Ao mesmo tempo, é conseqüência da preocupação geral da alma fiel por descobrir o significado mais profundo deste mundo, que é obra do Criador. Com periódica monotonia, há quem procure ressuscitar uma suposta incompatibilidade entre a fé e a ciência, entre a inteligência humana e a Revelação divina. Essa incompatibilidade apenas pode surgir, e só aparentemente, quando não se entendem os dados reais do problema.

Se o mundo saiu das mãos de Deus, se Ele criou o homem à sua imagem e semelhança e lhe deu uma chispa da sua luz, o trabalho da inteligência - mesmo que seja um trabalho duro - deve desentranhar o sentido divino que já naturalmente têm todas as coisas; e à luz da fé, percebemos também o seu sentido sobrenatural, que procede da nossa elevação a ordem da graça. Não podemos admitir o medo à ciência, porque qualquer trabalho, se for verdadeiramente científico, conduz à verdade. E Cristo disse: Ego sum veritas, Eu sou a verdade.

O cristão deve ter fome de saber. Desde o cultivo dos saberes mais abstratos até às habilidades do artesão, tudo pode e deve levar a Deus. 

Porque não há tarefa humana que não seja santificável, que não seja motivo para a nossa própria santificação e oportunidade para colaborarmos com Deus na santificação dos que nos rodeiam. A luz dos seguidores de Jesus Cristo não deve permanecer no fundo do vale, mas no cume da montanha, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus.

Trabalhar assim é oração. Estudar assim é oração. Investigar assim é oração. Não saímos nunca do mesmo: tudo é oração, tudo pode e deve levar-nos a Deus, alimentar esse convívio contínuo com Ele, da manhã até à noite. Todo o trabalho honrado pode ser oração; e todo o trabalho que for oração, é apostolado. Desse modo, a alma se enrijece numa unidade de vida simples e forte.

Nada mais vos queria dizer neste primeiro Domingo do Advento, em que já começamos a contar os dias que nos faltam para o Natal do Salvador. Vimos a realidade da vocação cristã, como o Senhor confiou em nós para levar almas à santidade, para aproximá-las dEle, para uni-las à Igreja e estender o reino de Deus a todos os corações. O Senhor nos quer entregues, fiéis, delicados. Ele nos quer santos, muito seus.

Por um lado, a soberba, a sensualidade e o tédio, o egoísmo; por outro, o amor, a dedicação, a misericórdia, a humildade, o sacrifício, a alegria. Temos que escolher. Fomos chamados a uma vida de fé, de esperança e de caridade. Não podemos cruzar os braços e deixar-nos ficar num medíocre isolamento.

Certa vez, vi uma águia encerrada numa gaiola de ferro. 

Estava suja, meio depenada; tinha entre as garras um pedaço de carne podre. Ocorreu-me pensar no que seria de mim se abandonasse a vocação recebida de Deus. 

Fiquei com pena daquele animal solitário, enjaulado, que tinha nascido para voar muito alto e olhar o sol de frente. Podemos remontar até às humildes alturas do amor de Deus, do serviço a todos os homens. Mas para isso é preciso que não haja recantos escondidos na alma, onde não possa entrar o sol de Jesus Cristo. Temos que jogar fora todas as preocupações que nos afastem dEle; e assim Cristo em tua inteligência, Cristo em teus lábios, Cristo em teu coração, Cristo em tuas obras. Toda a vida, o coração e as obras, a inteligência e as palavras, saturadas de Deus.

Olhai e levantai a cabeça, porque está próxima a vossa redenção, lemos no Evangelho. O tempo de Advento é tempo de esperança. Todo o panorama da nossa vocação cristã, essa unidade de vida que tem como nervo a presença de Deus, nosso Pai, pode e deve ser uma realidade diária.

Pede-a comigo a Nossa Senhora, imaginando como Ela passaria aqueles meses à espera do Filho que ia nascer. E Nossa Senhora, Santa Maria, fará com que sejas alter Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo!


Livro "É Cristo que passa"
Blog Redemptionis Sacramentum

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